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“Too good at goodbyes”: sobre relacionamentos modernos

Sam Smith é definitivamente um dos artistas mais promissores atualmente. Seu potencial vocal é quase ridículo de tão incrível, mas penso que para além disso, o senso de familiaridade em suas músicas é a garantia de seu sucesso.

Assim como seus singles Stay with me e I’m not the only one, Too good at goodbyes fala diretamente com o aspecto dos relacionamentos amorosos.

O grande sucesso da temática está associado ao senso de identidade que as pessoas criam com as músicas graças as líricas sobre amor, perda e a dor ao ver uma relação romântica chegar ao fim.

Rejeição ao sofrimento

Too good at goodbyes vai um pouco mais além. A começar pelo título, “Muito bom em despedidas”, já entendemos que trata da naturalização do ato de se despedir a ponto de deixar de ser um problema.

Ela discorre sobre uma característica cada vez mais comum quando se pensa em como as pessoas têm buscado criar camadas de proteção contra o sofrimento.

Veja bem, ninguém gosta de sofrer, mas todos nós temos a consciência de que o sofrimento faz parte de nossas vidas. Todos nós iremos sofrer repetidas vezes.

Ao tratar sobre relacionamentos amorosos, criamos uma aversão à mera ideia de que alguém possa nos machucar. Nos condicionamos a rejeitar o sofrimento de qualquer maneira — mesmo que isso implique em sabotar a relação completamente.

So I’m never gonna get too close to you (Então nunca vou me envolver tanto com você)

Even when I mean the most to you (Mesmo quando eu for o mais importante para você)

In case you go and leave me in the dirt (No acaso de você ir e me deixar na lama)

Nesse trecho, por exemplo, a letra deixa clara a prática de entrar em um relacionamento antecipando seu fim.

Pessimismo como norma

Fomos de um extremo ao outro: quando entendemos que os contos de fada criaram um ideal ilusório do amor romântico, criamos então uma alternativa inteiramente pessimista para acabar de vez com essa utopia.

Acabamos convencidos de que ninguém é mais capaz de amar alguém de maneira verdadeira e honesta. Assim a cada nova relação os pares estão somente atendendo a um desejo primitivo por contato humano, não a sentimentos reais.

But every time you hurt me, the less that I cry (A cada vez que me machuca, menos eu choro)

And every time you leave me, the quicker these tears dry (A cada vez que me deixa, o mais rápido essas lágrimas secam)

And every time you walk out, the less I love you (A cada vez que se vai, menos eu te amo)

Baby, we don’t stand a chance, it’s sad but it’s true (Amor, não temos chance, é triste, mas é verdade)

Por acreditarmos que não existe mais a possibilidade de uma relação saudável e duradoura, nos forçamos a matar nossas expectativas e em resultado nos tornamos cada vez mais disassociados do sentir.

Mas será mesmo possível que todos os seres humanos são assim? Seria a frieza um novo tipo de patologia?

Somos seres de ações e reações e assim sendo, acabamos espelhando nossas atitudes nas de nossos iguais. Então criamos gerações inteiras desacreditadas na autenticidade de sentimentos.

Vira até um motivo de comemoração, tornar-se a pessoa que demora a responder ao invés de ser a pessoa ansiosa para o celular tocar.

Ninguém quer se sentir deixado para trás, ninguém quer sair como perdedor. Mas que tipo de vitória é essa na qual regozijamos a rejeição do outro?

Insensibilidade como proteção

Passamos a nos blindar contra o que acreditamos ser um mal generalizado. Escolhemos as vendas porque elas nos parecem mais confortáveis e de fato são. Confiar em alguém é estar vulnerável e desenvolvemos alergia à vulnerabilidade.

I know you’re thinking I’m heartless (Sei que você pensa que não tenho coração)

I know you’re thinking I’m cold (Sei que pensa que sou frio)

I’m just protecting my innocence (Estou somente protegendo minha inocência)

I’m just protecting my soul (Estou somente protegendo minha alma)

Justificamos para nós e o mundo de que tudo isso é em nome de nossa proteção e o resultado é isso que tanto vemos: relações fracassadas porque ninguém mais quer fazer o esforço de se comprometer.

Estamos todos com tanto medo de ser aquele que irá sofrer que não queremos arriscar. É impossível haver sucesso sem tentativa.

E aí com tantos relacionamentos decepcionantes, isso se torna a munição perfeita para que nos julguemos certos. Dizemos a nós mesmos que ninguém mais vale nada e ignoramos nossa própria (falta de) participação no resultado.

No way that you’ll see me cry (De jeito nenhum você me verá chorar)

I’m way too good at goodbyes (Sou bom demais em despedidas)

Isso acaba por desvalorizar nossas interações humanas e alimentar um senso de orgulho por se tornar cada vez mais insensível. Entende-se aqui a insensibilidade não como um julgamento, mas a partir da real “ausência de sentir”.

Para não mais sentir dor, opta-se por não mais sentir amor.

E assim levamos uma meia-vida, satisfeitos na ilusão de que somos inteiros.

Gabriela Araujo

Tradutora (EN - PT), preparadora e autora de obras de ficção contemporânea.

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