Poesia

A liquidez de uma dor

A lágrima é compartilhada

e escorre junto ao sangue

que sem cessar

tento esfregar da minha parede.

Nas histórias que ouço

e nas histórias que vivo,

os personagens oscilam,

mas algo é constante:

atiram em meu peito

e morre comigo o grito de dor.

Porque posso sofrer sim,

mas que sofra eu calada.

A carnificina não pode ser interrompida

porque ousei acusar que vejo diariamente

morrer a criança que nasceu ontem.

É vingança, justificam, mataram um dos nossos.

Por que será, eu me pergunto, que o buraco jazia

na cabeça de meu amigo

que descia o morro de madrugada

para estar no trabalho às 7h na zona sul?

A lágrima é compartilhada,

a responsabilidade não.

Casualidades, afinal,

quando morre um negro pobre é só mais um; 

olhe só a multidão que ainda restou, 

nem fará falta, eles expressavam com os olhos 

e diziam com as armas.

Preocupante é quando o negro pobre,

cansado de tomar na cara

de marmanjo que se diz autoridade

e de limpar sangue da calçada de casa

quer pedir retaliação:

quero que sangue seja pago com sangue.

O órgão de defesa resolve atacar.

O oprimido resolve atacar.

O passante resolve atacar.

O amigo resolve atacar.

Será que renunciaram ao coração?

Nesse eterno ciclo de reciprocidade vil,

o preço da vida se torna a morte.

E se nosso objetivo se torna matar,

se o natural é fazer sangrar

se o natural é fazer doer

por que diabos devemos lutar?

A lágrima é compartilhada;

a dor, também.

Mas nada se compara à dor

de quem vive esse poema 

na pele, na alma, no dia a dia.

Originalmente publicado no Medium em maio de 2020.

Gabriela Araujo

Tradutora (EN - PT), preparadora e autora de obras de ficção contemporânea.

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