
A liquidez de uma dor
A lágrima é compartilhada
e escorre junto ao sangue
que sem cessar
tento esfregar da minha parede.
Nas histórias que ouço
e nas histórias que vivo,
os personagens oscilam,
mas algo é constante:
atiram em meu peito
e morre comigo o grito de dor.
Porque posso sofrer sim,
mas que sofra eu calada.
A carnificina não pode ser interrompida
porque ousei acusar que vejo diariamente
morrer a criança que nasceu ontem.
É vingança, justificam, mataram um dos nossos.
Por que será, eu me pergunto, que o buraco jazia
na cabeça de meu amigo
que descia o morro de madrugada
para estar no trabalho às 7h na zona sul?
A lágrima é compartilhada,
a responsabilidade não.
Casualidades, afinal,
quando morre um negro pobre é só mais um;
olhe só a multidão que ainda restou,
nem fará falta, eles expressavam com os olhos
e diziam com as armas.
Preocupante é quando o negro pobre,
cansado de tomar na cara
de marmanjo que se diz autoridade
e de limpar sangue da calçada de casa
quer pedir retaliação:
quero que sangue seja pago com sangue.
O órgão de defesa resolve atacar.
O oprimido resolve atacar.
O passante resolve atacar.
O amigo resolve atacar.
Será que renunciaram ao coração?
Nesse eterno ciclo de reciprocidade vil,
o preço da vida se torna a morte.
E se nosso objetivo se torna matar,
se o natural é fazer sangrar
se o natural é fazer doer
por que diabos devemos lutar?
A lágrima é compartilhada;
a dor, também.
Mas nada se compara à dor
de quem vive esse poema
na pele, na alma, no dia a dia.
Originalmente publicado no Medium em maio de 2020.
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