Sentimentos & Devaneios

Reflexões sobre o Brasil com 5 frases de Emicida

É bem provável que já ouviu falar em Leandro Roque de Oliveira, a.k.a, Emicida. Seu nome artístico originalmente juntava os termos “Mc” com “homicida”, já que seus amigos o chamavam de “assassino” por “matar” os adversários através das rimas.

Posteriormente, começou a utilizar E.M.I.C.I.D.A. como um acrônimo para “Enquanto Minha Imaginação Compuser Insanidades Domino a Arte”. Emicida é um rapper, cantor e compositor brasileiro que, famoso não só pelas rimas improvisadas, como também pelo seu posicionamento de denúncia às injustiças sociais e violências raciais.

Por isso hoje reuni cinco declarações feitas pelo rapper para pensar a sociedade brasileira:

“A gente fala sobre vencer de uma maneira coletiva num ambiente de adversidade, isso só é possível ao se conectar com nossa comunidade”

Frequentemente falamos sobre mudanças, sobre evolução, sobre deixar um legado melhor para as gerações futuras. Mas como estamos fazendo isso? Cá entre nós, é desonesto olhar ao redor e dizer que vemos um exemplo de país democrático que celebra as suas diferenças.

A própria ideia de democracia é um conceito questionável, quando pautado em um modelo que sobrevive de criar imensas desigualdades socioeconômicas. A taxa de desemprego no país bateu 13,8% no fim de setembro desse ano, a maior taxa desde que a pesquisa teve início pelo IBGE em 2012.

Que tipo de país diverso é o Brasil quando, no ano de 2020, uma mãe perde a guarda da filha de 12 anos por levá-la ao ritual de candomblé? No mesmo país em que iniciam crianças com menos de um ano no cristianismo através do batismo.

Há como existir diálogo, onde uma menina de 10 anos que foi estuprada por familiares é hostilizada por realizar um aborto, enquanto um jogador de futebol condenado por estupro coletivo na Itália é recebido de braços abertos por um clube paulista?

No Brasil, a expectativa de vida de pessoas transgêneros é de 35 anos. Esse mesmo Brasil é o país que mais busca no mundo por vídeos de pessoas transgêneros em sites de pornografia.

Emicida está certo: só é possível vencer de maneira coletiva. Só é possível evoluir quando a comunidade faz isso, em conjunto. A pergunta que fica é: será que a sociedade está de fato interessada em crescer em comunhão? Ou continuamos perpetuando ideais individualistas de um progresso do ego?

“O táxi não para pra você, mas a viatura para, esse é o problema urgente do Brasil”

Emicida fala, em poucas palavras, sobre as micro-violências que homens pretos enfrentam cotidianamente no país. Uma das cicatrizes do racismo estrutural é a associação da figura do sujeito perigoso à comunidade preta, sobretudo homens pretos, e a desculpa disso se dar por “medo da violência exacerbada”.

Esse ano mesmo, uma juíza curitibana mencionou, na sentença de condenação de um réu, que ele era “seguramente integrante do grupo criminoso, em razão da sua raça”. Na famigerada declaração pública que sempre segue esse tipo de conduta, ela pediu “sinceras desculpas se, em razão da interpretação do trecho específico da sentença, ofendeu a alguém”.

Se nem ao menos responsabilizam devidamente uma juíza por atitudes racistas, o que esperar da senhorita que se sente mais segura atravessando a rua quando vem um homem preto em sua direção? Ou até mesmo de uma influenciadora que se sente confortável em fazer um vídeo afirmando que “o racismo é natural porque os negros cometem mais crimes”?

No país de hoje, para pretos nem táxis param e muito menos caronas, como afirma esse artigo no site Guia Negro. Em resultado, cria-se a necessidade de vídeos orientando como homens pretos devem agir em abordagens policiais como esse aqui.

Isso para tentar evitar que policiais disparem 111 tiros contra eles, ou que confundam guarda-chuva com fuzil, furadeira com arma, saco de pipoca com droga, bíblia com arma.

“Essa obrigação de resistir destrói muito da beleza que existe em nós (…) Não ter a opção de ser vulnerável é muitas vezes desesperador. A questão é que não há muitas opções para nós, além de ser forte. A alternativa é virar estatística”

Como Emicida coloca, é preciso repensar a ideia de associar a negritude à força como algo maravilhoso, como um dom divino. Alguma vez a comunidade negra teve escolha? Muitos foram arrancados de suas casas, forçados dentro de um navio e vendidos à escravidão, onde sofreram abusos que se estenderam por séculos.

Foram saqueados, violentados, largados à margem e esquecidos pelo mundo — habitando um continente que confundem com um país e que julgam não possuir nada além de miséria e doenças.

Foram libertos pela primeira “antirracista benevolente” como resultado de um jogo político e se viram nas ruas, sem nenhuma perspectiva de sustento ou expectativa de futuro, quando tudo o que tinham conhecido até então era o cárcere.

Até hoje sofrem violências e abusos que são invisibilizados, negados, que ficam impunes e que seguem como herança de geração para geração. Compõem as principais vítimas do Atlas da Violência ano após ano, bem como os maiores números dentre a população de rua e a comunidade que vive em extrema miséria.

E após essa série de vivências que sempre impediu e ainda impede que a comunidade negra se permita ser vulnerável ao mesmo tempo em que segue sendo vulnerável, esse mesmo povo precisa se deparar com alucinações como “racismo reverso” que, num cenário positivo, causaria risadas, mas na realidade funciona como mais uma ferramenta de opressão.

“O Brasil planta Fernandinho Beira Mar e depois quer chorar dizendo que tem pouco Dráuzio Varela”

Quando me perguntam qual seria a minha prioridade se pudesse mudar o mundo, prontamente respondo “educação”. Há fatores tão importantes quanto como “direito à moradia, ao alimento, à saúde”; a razão pela qual sempre respondo educação é porque para mim não existe mudança sem uma mudança na consciência.

A consciência de mundo é algo que pode mover ações de pessoas diferentes, de lugares distintos e com realidades diversas. E quando falo sobre educação, não me refiro somente ao ensino tradicional. Falo sobre a criação de possibilidades de futuros que uma criança enxerga dentro de casa.

É difícil convencer um jovem a ter esperança quando vê os pais se matando de trabalhar só para que o dinheiro suma depois das contas no início do mês. Assim como é difícil convencer um jovem que tem tudo, a reconhecer que já nasceu muitos passos a frente na corrida da vida.

Aceitamos que para que uns tenham muito, outros precisam ter pouco. E você que se entenda com o destino se não gostar de onde a roleta da vida te colocar. Nada de ficar com raiva ou apelar para violência, ninguém tem culpa do seu azar.

Será que não? Um discurso raso como quem diz que quem pertence à realeza “ é escolha de Deus”, “tem sangue azul” ou “vem de uma tradicional linhagem”. Gostamos muito de ver histórias de revolução dos oprimidos na ficção, mas na vida real não querem mudança, querem controle.

Estamos longe de chegar a algum lugar no debate sobre meritocracia. Ainda acham louvável que alunos andem 3km e atravessem um córrego para chegar à escola. Eles são “determinados, focados, guerreiros”.

Os brasileiros adoram aplaudir quem morre na guerra, mas ninguém quer morrer.

“Só no tempo que estou aqui, quantas crianças pretas foram mortas pelo Estado Brasileiro?”

Emicida questiona e eu costumo dizer que a maternidade preta no Brasil é um outro nível de coragem. Já pensou se, além de todas as preocupações que já possui com o bem-estar de seus filhos, também tivesse que temer porque ele é alvo de uma política genocida?

A discussão sobre a guerra às drogas é um assunto extremamente polêmico e extenso. Não caberia nesse artigo um debate como esse e, de qualquer modo, eu cederia à palavra à estudiosos que de fato têm mais respaldo para tratar sobre o tema.

Mas resumidamente, quando falam que não existe guerra às drogas e sim aos pobres, querem dizer que só é preciso ler superficialmente os materiais certos para saber que o crime organizado no país não começa nas periferias, mas são as periferias os palcos das chacinas.

Eles querem dizer que não é a comunidade periférica que enriquece com o tráfico de drogas, é ela que morre. E, desde o início, existe um sadismo que se encontra satisfeito em ver sangue pobre escorrendo, mascarado na justificativa de que “estão combatendo à violência”.

Estão “combatendo a violência” com assassinatos da juventude preta e aparentemente  está tudo bem matar porque isso faz parte da necropolítica aceita socialmente. Está tudo bem porque nesse país, corpos pretos sempre foram vistos como produtos descartáveis; depois do uso, jogue fora.

Essa realidade acontece em limites geográficos compartilhados. Porém, isso não ficaria evidente nos tópicos mais recorrentes nas pautas governamentais, propostas de melhorias nem nas discussões entre amigos.

O pensamento é de que tudo isso é muito distante e não pode nos afetar. Nesse sentido, uma vez fiz uma reflexão no Instagram e gostaria de terminar esse artigo com ela:

Se o que você nasceu tendo não fosse seu, será que os seus sonhos ainda seriam possíveis?

Gabriela Araujo

Tradutora (EN - PT), preparadora e autora de obras de ficção contemporânea.

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